9.13.2009

“...o conjunto dos sistemas de mercadorias da jovem civilização industrial passa a manifestar-se em campos de percepção imateriais”. (sobre a invenção do marketing)

“Se levarmos em conta o fato de que a observação se dá por meio da luz e de que esta se propaga a uma velocidade finita, constataremos que os objetos são observados em um passado tanto mais recuado quanto aumenta sua distância espacial...” (Evry Shatzmann).

‘“A primeira vítima de uma guerra é sempre a verdade”, escreveu Kipling, mas nós poderíamos dizer: a primeira vítima de uma guerra é o conceito de realidade’.

‘Quando declara que o cinema é colocar um sol em cada imagem, Gance está apenas repetindo, três mil anos depois, o canto de Akhenaton: “O sol cria milhares de parências...”’.

“...é preciso falar primeiro aos olhos”.

‘Depois de sua eleição, em janeiro de 1982, Reagan pediu a seu amigo Charles Wick – um milionário californiano, diretor da Voz da América – que organizasse o “maior show desde a criação do mundo”’.

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Uma imagem?
Apaguem as luzes! Um holofote se ascende e um cone de luz vindo do alto ilumina a área correspondente a um pequeno círculo no chão, suficiente para permitir que se enxergue uma cadeira que ali se encontra. Não fosse pela escuridão ao redor poderíamos ver que se trata de uma sala, como que de interrogatório policial, ocupada apenas pela tal cadeira, pelo holofote, pela luz que emana deste, e por um enorme espelho, que colocado a cerca de 1,20m do chão, preenche uma das paredes de um canto a outro. Esse é um famoso espelho! Não o da Branca de Neve, o espelho em questão não nos mostrará a mais bela dentre as mulheres. Aliás, não é um espelho que serve exatamente para mostrar... Tal espelho é famoso por permitir que se oculte algo ou alguém por trás dele sem que apareça do lado espelhado.
A mágica deste espelho só é possível graças à iluminação dos ambientes. A sala de onde se vê a superfície espelhada deve estar mal iluminada, enquanto que a sala oculta deve estar mergulhada nas sombras. Se a primeira sala estivesse completamente iluminada, uma maior aproximação do espelho e poder-se-ia enxergar (ainda que precariamente) o outro lado. E qualquer vestígio de luz vindo da sala oculta alcançaria o mesmo efeito. Mas voltemos à cadeira e ao indivíduo que vem sentar-se nela.
Quem quer que seja que venha a sentar-se na cadeira, está ali por algum motivo e com a intenção, própria ou alheia, de ser posto em evidência. Pensemos então um interrogatório, já que a sala foi inicialmente associada a essa idéia, a pessoa-na-cadeira sabe que está ali para ser observada (tendo conhecimento do espelho ou não) e que nesse espaço limitado que tem para se expressar deve medir bem os seus atos. Algo que transpareça bem a sua inocência, mas nada em profundidade que possa levá-la a ver-se abrindo as portas de outros espaços de sua existência a visitantes indesejados, os quais lhe querem roubar toda a privacidade sob o argumento da segurança de todos.
Mas pode ser que esta sala não seja uma sala. Poderíamos também imaginá-la como um palco. Nesse palco o cone de luz que emana do holofote pode aumentar ou reduzir o seu diâmetro a depender das dimensões das cenas que se desenrolarão. O espelho, a platéia e tudo aquilo fora do diâmetro do cone de luz permanece nas sombras, na mais completa escuridão. Sendo assim, nem é necessário fechar as cortinas no momento de transição entre uma cena e outra, naqueles momentos em que se muda o cenário. Para isso basta que se pisque a luz do holofote, seria como se o que houvesse piscado tivesse sido nosso próprio olho, o momento em que a mais calma e densa escuridão se apodera do palco e é como se a vida desse uma pausa e, por mais tempo que se passe entre o apagar e ascender, para nós, não se passou nada além de uma breve piscadela.
Com o retorno da luz, uma nova cena se desenrola, amores impossíveis; longas guerras; vinganças meticulosamente arquitetadas; extermínio indiscriminado; um homem que mata o pai e desposa a mãe! Tudo claramente perceptível aos nossos olhos atentos. Tudo mesmo? Nesse teatro a platéia não está contemplando os objetos ideais através de suas sombras projetadas na parede do fundo da caverna. Aqui nós encaramos a luz e tudo o que nela aparece. Mas nos escapa completamente tudo aquilo que se desenrola por trás do espelho.
O que a platéia pensa disso?
E ela pensa?
Na platéia não nos vemos uns aos outros, temos olhos apenas para o que aparece à luz, e é como se cada um de nós fossemos espectadores únicos de um fato que se apresenta para, e somente para, mim. Doce ilusão! Ilusória ainda é a sensação de que contemplamos a verdade, e uma verdade instantânea. Não nos damos conta de que a duração dos acontecimentos que nos são apresentados pode ser diferente da duração em que eles de fato ocorrem. Ou seja, corremos numa velocidade que nos é ditada, num movimento não-uniformemente variado. Corremos porque tal movimento não espera por nós. Mas às vezes também trotamos, andamos, paramos. Para novamente voltar a uma aceleração crescente e desmedida que não sabemos onde, porque ou como começou e nem se tem um fim. A velocidade é o fim em si. E fazemos tudo isso na comodidade de nossos assentos numerados.
Em um tempo onde compreender é menos importante do que ver, a velocidade do que se passa no palco é o que vai determinar até onde, ou até quando, uma cena merece mais importância do que outras. Compreendemos até onde o tempo em que ficamos expostos a tal ou qual acontecimento nos permite, para logo em breve esquecermos até o que acabou de se desenrolar diante de nossos olhos e nos direcionarmos somente àquilo que está se desenrolando.
Podemos nesse ponto tomar emprestada de uma outra alegoria, que inclusive já foi anteriormente aludida, a idéia de uma esteira rolante, que permite que os objetos deslizem diante de nós. No nosso caso, toda espécie de objetos pode deslizar em nosso palco, porém a aparição deles é controlada pelas piscadas do holofote e a velocidade com que deslizam é controlada pelo sujeito que controla os botões que acionam a esteira. Sujeito e botões se encontram atrás do espelho.
Pode acontecer de um dia algo fugir do controle. Uma vez, uma voz se elevou da platéia e reclamou da velocidade com que as cenas se desenrolavam, argumentando que a sua prática bastante singular de apreciar os momentos e as sucessões estava sendo prejudicada e que temia chegar a hora em já nem se lembrasse do que fazia ou de como fazer aquilo. O que aconteceu? Não foi possível identificar de onde veio a voz que se elevou da escuridão. Agora, de tempos em tempos volta-se o foco de luz para a platéia, a esta tem sido permitida alguma movimentação e expressão, mas só dentro das possibilidades previamente estabelecidas pelo sujeito dos botões atrás do espelho. Acho que chamam a isso interatividade.
Mas os botões continuam lá! E o sujeito, e o espelho e a cadeira (que às vezes aparece, às vezes não), e o indivíduo, e a esteira, e a platéia e o holofote, apontando sempre na direção desejada. Conseguem imaginar um teatro onde, apesar de sentados em lugares distintos, todos os espectadores vêem as cenas de maneira idêntica, independente do ângulo que ocupam em relação ao palco, ouvem os sons da mesma maneira e somente aqueles sons que são intencionalmente emitidos? Nesse teatro é possível que se uma cena se encaminha para o imprevisto o holofote se apague e volte a acender somente quando se recupera o rumo demarcado. Um teatro onde nos fazem de bobos e ainda pagamos entrada! E onde muitos não se perguntam, dentre outras coisas o que ocorre com aqueles que não têm como pagar.

***

“Tudo que é visível aparece na luz, nós acreditamos em nossos olhos e a luz nos parece indistintamente como a verdade do mundo.”

3 comentários:

Kleber disse...

Como aprender a não acreditar nos olhos, quando estamos imersos numa civilização visual?

J. Thiago disse...

Talvez fechando os olhos... Talvez...

Kleber disse...

Talvez piscando. A piscada tem o dom de destituir uma ordem. Se o holofote pisca e retoma o sentido que lhe interessa, a piscada pode fazer o mesmo. abraço!