8.30.2009

O Escafandro e a Borboleta

Derrame. Paralisia. Desespero. Jean-Do, editor da Elle, é homem de imagens, aparências e movimentos que - inesperadamente! - se encontra enclausurado em sua própria carne. Escafandro! Seu pensamento quer ganhar o discurso; seus afetos, a ação; ambos querem correr, saltar e voar tal qual o verme melindroso a habitar o casulo. Borboleta! Longe das moralinas, o Sr. Bauby não faz de seu corpo frágil e indefeso um motivo justo para piedades e dramas afins. Afinal, não é a matéria que nos interessa - para longe com as quantidades! - mas os dois pilares que dão sentido à existência de nosso morimbundo: memória e imaginação! Com a primeira, fundamenta! É na memória que o corpo se liga ao passado, ao que já foi presente mas que - de alguma maneira - ainda é. Com a segunda, rompe! A imaginação é a quebra mesma dos esquemas pré-vistos e re-petitivos, lançamento rumo a um futuro que se faz no agora! O trampolim e o salto! E, mesmo na imobilidade débil de nosso agonista, vemos o seu tempo passar e passamos com ele. Passamos não rumo a um passado que já se desfez, mas a uma temporalidade perdida que ainda dura em nós. Vida! Jean-Do, mesmo sem corpo, é vida! É arte que não imita, mas produz! É movimento grácil, mesmo que em seu balé - belo, sôfrego e apaixonante - só hajam piscadelas...

8.24.2009

O que a criança diz:

Um desafio. Quando fiz questão de participar de uma disciplina voltada (e concentrada) em assuntos para uma turma de Psicologia, sabia que em algum momento eu teria de lidar com termos, conceitos e idéias, com os quais um aluno graduando em Comunicação não está acostumado. Talvez isso explique - em parte - o meu (ainda) receio de opinar nas discussões em sala, ainda mais quando termos 'estranhos' a mim estão em jogo. Como neste caso que me faz escrever agora, um texto do autor Gilles Deleuze. A outra parte é pura timidez, ainda não totalmente curada em 4 anos de curso.

Um desafio bem interessante. Desde que tomei conhecimento da proposta e da metodologia que seriam utilizadas pelo professor, me interessei e busquei participar da melhor forma possível. Até por ter uma formação acadêmica diversa, tive a impressão de que seria ainda mais enriquecedora - para mim e espero que para todos- a experiência de troca de informações e opiniões de duas áreas que combinam tanto. Embora alguns estudiosos por vezes esqueçam esta afinidade. Melhor ainda quando a linguagem do cinema faz a ponte entre os temas.

Uma salvaguarda. Tudo que escrevi até este ponto, coisas que fogem da minha motivação original de estar postando neste espaço, não foi por enrolação (juro). Foi apenas uma tentativa de deixar mais clara a minha posição inicial de leigo em termos mais específicos da Psicologia. Não farei juízos de valor nem críticas pouco abalizadas a algum tema - o que seria de uma inépcia bastante desnecessária da minha parte. Irei apenas deter-me a um dos aspectos mais interessantes do que pude absorver sobre algumas idéias de Deleuze.

O tema. No texto do professor Kléber Matos, baseado em "o que as crianças dizem" e pela discussão em sala, o conceito do Devir-criança, como "'Uma' criança que coexiste conosco e está numa zona de vizinhança ou num devir" foi o que mais me atraiu. Principalmente pela afirmada tendência inventiva presente enquanto virtualidade na criança e no adulto. Pude compreender a força das 'brincadeiras infantis'. Da brincadeira que não dá respostas prontas, da criança que não sabe ler mas continua a inventar suas próprias histórias de um livro em suas mãos. Exploratórias daquilo que lhes apresenta. Construir mapas para a diferença? Talvez.

Várias dúvidas. Não estariam alguns profissionais coibindo o devir-criança dos seus pacientes (e o próprio)? São as pessoas consideradas 'normais' aquelas que escondem melhor o seu 'lado criança', e preferem brincar sozinhas e escondidas dos outros, com medo de represálias? Será que a Psicologia atual (leia-se, algumas tendências) mesmo acabando - ou tentando acabar - com o velho sistema de enclausuramento, que 'excluía' da visão das pessoas 'normais' os ditos loucos, não estaria ainda tentando uniformizar as pessoas num conceito tão subjetivo quanto o de 'normalidade'? Estaremos todos prontos para lidar com devir-crianças totais?
Sempre deixando claro que minha crítica não se faz ao Meio - ao estudo, e sim aos métodos utilizados. E que minhas dúvidas se fazem do lado 'de-fora'. Assistindo ao mesmo filme que o Deleuze, quem sabe.

Uma boa tirada. Ao pensar nesses temas, lembrei-me de um livro que li há algum tempo e que confesso, comprei pelo título. O livro chama-se "Como tornar-se um doente mental", e foi escrito pelo psiquiatra português José Luís Pio Abreu. A publicação é um achado. O autor, ao considerar a ineficácia de milhares de tratamentos e receitas - médicas ou de crendice popular, dá 'dicas'para os leitores de como contrair a maioria das psicopatologias, a partir dos critérios de diagnóstico do consenso americano do DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders,4th Edition - American Psychiatric Association). "Se ensinarmos as pessoas a tornarem-se doentes mentais autênticos, acabam-se os mal entendidos psiquiátricos", provoca Pio Abreu. "Ao admitir seus próprios limites (ou sintomas), você será apresentado ao mundo das pessoas comuns, que aceitam os desafios e paradoxos da vida. Convenhamos: é mais fácil tornar-se um doente mental do que manter-se são nos dias de hoje" - finaliza o argumento, na orelha do livro.

Um fim.



Luiz Paulo C. Teixeira

8.22.2009

Filmow / Skoob

Então... À uma ou duas semanas atrás tive contato com essas duas comunidades virtuais: o Filmow e o Skoob, e achei legal compartilhá-las com os senhores. O Filmow é uma rede social voltada ao cinema. E - aviso logo aos mais afobados - não se trata de downloads e afins. A proposta do Filmow é juntar uma galera sob e sobre a temática do cinema. Faz-se o cadastro - tão fácil que dá até medo - e constrói-se rapidamente o perfil. O usuário cadastra os filmes que já assistiu, os que pretende assistir, os que não quer ver nem baixando, pontua com estrelas as películas que quiser, deixa comentários na página de cada filme, resenha as narrativas que mais lhe agradaram, assiste a trailers de clássicos e lançamentos e, claro, conhece outras pessoas. O Skoob é a mesma coisa, mas com livros. E um lance bacana do Skoob são os encontros rotineiros que o pessoal organiza: leituras, exposição de pinturas, teatro... Mas isto em estados nos quais a comunidade é forte, como o Rio de Janeiro. Sergipe nem entrou nas estatísticas do site, ainda! Mudemos a situação, então...
www.filmow.com
www.skoob.com.br

8.20.2009

Uma sucessão de cenas faz movimento, mas faz sentido?

Cena 1.
O que quer Deleuze ao pensar “o que as crianças dizem”? Essa é uma questão que me vem; o que ele quer ao dizer isso? O que queremos nós ao vir aqui, hoje, quinta-feira, dia 20 de agosto de 2009? Queremos saber o que Deleuze quis dizer ao escrever sobre o que as crianças dizem? Talvez. Essa é a resposta mais verdadeira possível. Pois não se pode inferir sentido no outro por dedução. Assim a dúvida se instala como verdade. A dúvida se instala como uma política de convivência. A dúvida se instala como uma crise.
Assim sendo, por mim, tudo bem. Por mim, agora. Daqui a pouco pode ser muito pesarosa essa dúvida. Pode querer dizer de mim, aquilo que já não me agrada. Que já me retira o oxigênio, pois a dúvida quando instala verdade, tem efeito de gozo efêmero. A dúvida é um éter. Um perfume que seduz, mas que some no ar, como todo sólido.
Digo sólido porque nesse texto fiz da dúvida um sólido. Há também uma referência ao marxismo nessa frase. É uma ilustração e toda ilustração representa aquilo que se quer na luz. Que se quer na luz, sempre. Lustres, ilustres e lustrados querem luz acesa para brilhar. Mas lustres, ilustres e lustrados sabem como se dá a luz?

Cena 2.
Apaguem, por favor, apaguem o desenho que acabo de fazer com garranchos mal elaborados e pretensiosos, das suas cabeças. Retirem-no da sua memória e vamos começar de novo. Isso. Vamos começar de novo e dizer algo que soe melhor aos nossos ouvidos; melhor, que soe melhor aos meus ouvidos, pois aqui se trata de uma audição de imagem. Foi esse o trato. Esse acordo me permite a pretensão de dizer o que bem ou mal entendo e que vocês, aí do outro lado, entendam do mesmo modo, bem ou mal também. É um exercício de retórica. De uma retórica mediana, que conversa, ou melhor, busca conversar com a imagem de quem escreve. Uma retórica que tem a presunção de se conectar ao outro, sem que esse outro saiba. Uma retórica que faz o outro pré-existir. E pré-existir é uma forma estranha de ser, que não quer que nada seja estranho quando, efetivamente, vier a acreditar que está sendo. Talvez seja bom repetir essa formula. Quem sabe o Lázaro está por aqui e quer anotá-la no seu caderninho que celebra tiradas de professores em sala de aula. Devagar então: Pré-existir é uma forma estranha de ser, que não quer que nada seja estranho, quando, efetivamente, esse nada vier a acreditar que está sendo. Fui reescrever e acabei escrevendo diferente. Nomeei o nada na segunda frase. O que isso pode querer dizer? Não sei, mas que a sentença ficou um tanto quanto existencialista; ficou. O ser e o nada; Sartre... e estamos aqui ainda entre quatro paredes ouvindo um texto que em duas cenas estabeleceu o eu que vos fala como eixo de interpretação. E Deleuze? E as crianças? Bom, se está difícil entrar no texto de Deleuze, quem sabe se fosse agora percorrer um texto de criança? Uma luz! Opa, luz de novo não. Há uma criança que muito me diz, só que estranhamente já a conheci adulta e eu também já andava me distanciando dessa coisa juvenil, melhor, infantil. Tinha lá uns dezessete anos.
O cara, melhor, a criança é o tal do cachorro louco que também atende pelo nome de Paulo. (…). Paulo Leminski. Engraçado como esse cara, mesmo depois de morto consegue ainda ser criança sem sequer deixar de ser um cachorro louco. Bom, vamos a outro enquadramento. Apaguem as luzem. Baixem a cortina. Opa, Não se trata de teatro. Aqui é cinema. Cinema é luz e movimento. Diz Deleuze que também que cinema é luz e tempo. Bom, aqui, até agora é luz na tela e movimento também na tela. Então é só mudar de cena e ver para onde vão os olhos e as sensações.

Cena 3
quando chove,
eu chovo,
faz sol,
eu faço,
de noite,
anoiteço,
tem deus,
eu rezo,
não tem,
esqueço,
chove de novo,
de novo, chovo,
assobio no vento,
daqui me vejo,
lá vou eu,
gesto no movimento

Cena 4
A esse poema, Paulo Leminski deu o nome de Profissão Deus. Mas o que ele quis dizer nesse trabalho? Teve ele trabalho, suor para margear a Profissão Deus? Que tipo de trabalho é esse? Que tipo de gente é essa, que caberia no escrito desse espaço chamado Profissão Deus? O que é isso? De onde vêm essas letras que se fazem palavras e sentidos? Linguagem, tudo bem, linguagem. Mas alguém escreve, diz, articula os signos alfabéticos que compõem outros signos que demandam sonoridade, posto também se darem a atmosfera de outros modos. Isso permite até que os an-alfabéticos se façam alfabetizados. Mágico! Bom, mas o que esse cara que diz, diz do que ele diz.
Para essa criança Leminski o dizer é um dizer. Ele não vai, além disso, nesse poema. Ele não consegue ir além daquilo que já vem. Ele acompanha o que já vem como se não houvesse um barato mais interessante, um barato mais caro, que acompanhar o que está vindo. Aquilo que está na condição de vir. Assim ele não tem trabalho, pois trabalho para uma criança rima com disciplina, melhor com obrigação. Crianças não gostam de obrigação. São vagabundas por natureza. É da constituição de uma criança ser vagabunda, não querer ter trabalho.
Eita que essa cena já passou muito do que era pra ter sido. Não era para tanto. Era só pra dizer o nome do poema de Leminski. Parece que ela, embriagada dele, foi ali, melhor por ali, a dizer dele o que ele nem disse, mas escreveu, pois uma linha já lhe vinha. Em Leminski o mundo não tem depois, pois nele, viver é dar seguimento.

Cena 5
Volto ao Deleuze. Assim como fiz com Leminski, farei com Deleuze. Uma lógica. Um método. Para o Deus de Leminski, seria um pecado metodicar? Não. O pecado seria não viver. Não viver é ter trabalho. Assim métodos que não dão trabalho, que não imprimem uma obrigação, não têm como ser pecado. Talvez seja melhor chamar esse método de modo. Um modo de encaminhar, de dar seguimento.
Em O que as crianças dizem, Deleuze escreve e faz uma apologia do MEIO. Palavra chave desse texto. Palavra-deus dessas páginas as quais encaminho aqui. Não é uma palavra-síntese. Não é uma palavra para fechar. Apesar de que, nesses dias que fazemos, chave serve muito mais para fechar que para abrir. Bom, mas essa chave é distinta, melhor uma chave esquisita. Uma esquizochave. Ela perde a forma depois que cumpre sua função. Não é bem isso. Ela não consegue abrir duas vezes a mesma porta, pois ela leva consigo aquilo que lhe faz sentido pelo caminho. Ela leva consigo a porta que abre. Ela é uma chave que encaminha e com isso faz caminho. As serventias do seu modo de fazer e daquilo que é feito, é do que preciso dizer, para assim encaminhar aqui O que as crianças dizem.

Cena 6
Deleuze alerta para os riscos de ver depois. Não somos como os Thundercats. Não temos a visão além do alcance. Assim, sempre vemos depois. Um pouquinho que seja. Mas quando vemos, vemos sempre depois. O povo da Gestalt já fazia valsa com essa nota na primeira metade do século passado. Ver depois tem seus comprometimentos, mas ninguém quer ser cego. Por outro lado, querer fazer daquilo que é visto depois, algo que sirva para sempre, não seria arriscado? Melhor, seria possível? Como seria possível? Não consigo pensar em outra possibilidade, que não essa. O único modo (método) que permite que aquilo que se vê, se constitua como plano de verificação para o sempre ou para o depois, é estabelecer cegueiras conseqüentes àquele campo do que foi visto. Um acordo entre alfabetizados. Um trabalho que continua sem dar seguimento. Se acordo não desse trabalho, não existiriam os advogados. Acordos dão trabalho. Requerem ordens a serem seguidas e representam essa ordem pela força dos braços e da venda nos olhos. Lembrem da imagem da senhora justiça? Essa é a tônica do acordo iluminista/liberal; do ideário do saber moderno: ser implacável e justo (exato) em qualquer tempo.
Criança não consegue isso. Muitas vezes quero que Tito, meu filho de onze anos, o faça. Dupla denúncia. Renúncia ao que-vem-criança pra si e para o outro. A humanidade não se abala com esse tipo de questão, mas é esse tipo de questão que abala o senso de humanidade das criaturas que se querem humanas. Por outro lado, não haveria psicólogos. Se digo isso, deve haver um que-vem-psicólogo, pelo menos. Daí, quando esse que-vem-psicólogo se realiza, de algum modo ele é força nesse encontro nosso de cada dia, nas disciplinas e matérias que habitamos no curso de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. Daí dá pra arriscar e dizer que ele não é justo (exato) e mesmo muitas vezes implacável, ele é múltiplo ou não estaria falando disso agora. Pode haver um que-vem-criança num que-vem-psicólogo. Mas mesmo assim, segue o curso?

Cena 7
O que é um curso? O que uma criança diria de um curso? Um rio pode ser um modo de curso.
De onde vem?
Não sei.
Para onde vai?
Pro mar?...
Atravessar?
Talvez!
Mergulhar?
Tchibum!
As respostas de uma criança-deleuze não precisam (objetivam) aquilo que carregam consigo. São exploratórias daquilo que lhes se apresenta. E aquilo que lhes se apresenta vão ser portas para os seus modos esquizochave de ser. É assim que vão percorrendo o mundo, estando sempre um passo adiante, pelo menos. Não por conhecerem o mundo, mas pelo que o desconhecimento do mundo e de si lhes imprime enquanto vontade e força
Em alguma página de seu texto, aqui se fazendo imagem, diz Deleuze já não como criança: “No limite, o imaginário é uma imagem virtual que se cola ao objeto real, e inversamente, para constituir um cristal de inconsciente”.
Isso quer dizer o que diz. Uma critica contundente a um modo de aprisionar o que conseguimos ser, ao passado. É como se nessa sentença, ele percebesse uma política de produção da subjetividade em um mundo sem futuro. Por sem futuro, entendam o que bem queiram. Penso sem futuro aqui, como condição temporal. É o futuro que nos permite ver aquilo que não mais pode mudar. O futuro quando presente permite ver o passado. Quando não temos mais o futuro, o presente não vai jamais além de uma forma de experimentar o passado. Penso que é isso que o Deleuze está dizendo e o que as crianças não conseguem aceitar. Por isso dizem o diferente e ao dizer o diferente, constroem mapas para a diferença. Estilos para a subjetividade. Estéticas para a existência. Uma beleza!

Cena 8
Há referências no texto escrito por Deleuze que não sei para onde carregar. Dúvida se instala e que precisa sumir. Sumir por um encontro com algum conteúdo informativo ou por uma vontade minha, uma força-criança que diz de outros que se encaminham em mim, e que não podem ficar, ou melhor, que precisam sumir, por que podem. Freud, Delingny, Lewin, Klein, Churchill, Hitler, Littler Richard, Littler Hans, Sra. K., Proust, Guattari, Polack e Sivadon, Littler Arpad, Vermmer, Carmem Perrin e Dioniso são sujeitos próprios em nossa gramática e estão nas páginas do Deleuze. São nessas páginas próprios sujeitos ou as crianças, essas diabólicas criaturas seriam a possibilidade desse próprio subjetivo e desujeitado?
É possível fazer sentido nesse texto sem conhecer essas referências substantivas há pouco citadas? Ou elas, como representações, são a verdade por atingir para compreender “O que as crianças dizem” em Deleuze?
Que psicologia é possível dizer disso que busco dizer? Quando o dizer é busca, ele, o tempo todo, deixa no ar rastros de sonoridade. É preciso se escutar lendo para não ser o leitor que quase todo texto demanda. É preciso se escutar lendo para não ser um decodificador, um especialista em escuta. Ninguém escuta melhor uma criança que ela mesma, mesmo quando ainda não alfabetizada. Por mais estranho que seja essa atividade de se escutar lendo é ela o que funda a escuta que reverbera. Talvez seja ela uma esquizochave para uma conversa sobre essa questão do imaginário. Algo sobre a citação do Deleuze. Uma outra cena.

Cena 9
O olho trabalha por fixação. O ouvido por ressonância. As mães suspeitam dos filhos quando não há barulho na casa. As mães sabem ser criança. Sabem que não é preciso ver, mas é necessário ouvir seus filhos quando estão em casa.
O que as crianças dizem? Mil coisas. Outra coisa. Sei que as crianças dizem por saberem escutar. As crianças escutam e inventam. São sons antes de serem imagens. Fazem isso muito rapidamente, pois dominam o meio. Melhor; para elas parece que o meio é a melhor forma de serem caminhos e fazerem mapas com suas esquizochaves.
E quem quiser que conte outra...

Deleuze, G. O que as crianças dizem. Crítica e clínica. Ed. 34

8.18.2009

Comentário do Filme "A cor do Paraíso"

Fazer um comentário de um filme é uma coisa nova pra mim. Nas próximas linhas, direi o modo como o filme “A Cor do Paraíso” me afetou, além de, é claro, do modo como eu o percebi.

Esse filme nos faz refletir sobre diversas coisas, principalmente sobre o que estamos fazendo com aquilo que nós já temos. Muito me impressiona o modo como ele é rico para uma discussão sobre cognição. É um tanto complicado apontar protagonistas e antagonistas nesse filme, uma vez que o filme não segue um esquema onde o “mocinho” tem um objetivo “X” e tem o trajeto impedido pelo vilão “Y”. No filme, o mais próximo de uma relação dessas seria a do menino cego (Mohammad), ocupando o lugar de “protagonista” e do pai desse menino (Hashem), ocupando uma posição “quase antagônica”. Esse “quase” não foi utilizado nesse contexto por acaso, uma vez que o pai não faz um esforço consciente de ser um empecilho à felicidade do filho. Antes que eu queime etapas, tentarei fazer uma descrição um tanto cronológica (das partes que considero importantes) do filme.

O filme se inicia sem qualquer tipo de imagem visual (a não ser de alguns nomes de produtores, figurinistas e etc.), sendo a voz de um dos professores de uma escola de cegos e de alguns alunos as únicas fontes de informação sensorial. Na fala desse professor, os alunos são chamados para reaverem as fitas cassetes com músicas, comentários, vozes de parentes, etc. que eles mesmos trouxeram. Em seguida, a aula termina e as crianças saem para esperar que os pais delas venham buscá-las. Diversas pessoas vêm buscar as crianças e Mohammad fica sozinho num banco esperando que venham buscá-lo.

Enquanto esperava, o menino escutou um barulho inesperado em umas moitas próximas de onde ele estava. Ele passa então a tatear entre as folhas pela ave que fazia o barulho, ao mesmo tempo em que espantava um gato que estava nas redondezas. Em um esforço quase impensável para quem vê de fora, ele coloca o passarinho de volta no ninho, subindo em uma árvore relativamente difícil de subir, além de ter que tatear até encontrá-lo (algo que duvido que defensores fanáticos da natureza estivessem dispostos a fazer, apesar de enxergarem).

A partir daí, as relações sociais do menino passam a ocupar o papel central na estória. Logo depois dessa cena comovente, surge uma ainda mais comovente, onde o menino espera o pai por muitas horas. Com a chegada do pai, fica nítida a relação entre ambos, manifestada nas palavras do menino: “achei que você não viria mais me buscar”. Com o passar do tempo, fica claro que o pai tem um sentimento inconstante ou dúbio em relação ao filho. Ele expressa direta ou indiretamente que preferia que ele não tivesse nascido, tentando, por diversas vezes livrar-se dele, seja tentando colocar ele em tempo integral longe dele em uma escola de cegos ou em uma marcenaria com um tutor, seja deixá-lo para ser devorado por lobos selvagens nos arredores da carvoaria em que trabalhava (considerando-o mais uma tragédia na vida dele, dentre diversas outras que haviam acontecido e outras que viriam a acontecer).

Durante a experiência de relativo abandono de Mohammad na marcenaria, surge também a relação entre o pai do menino e a avó dele, a qual discorda da decisão dele de colocar o menino para aprender a moldar madeira com um marceneiro cego (numa tentativa do pai de o tornar independente). Num momento bastante triste, a idosa sai na chuva atrás da criança, sendo seguida pelo filho, o qual tenta a todo custo fazê-la voltar para casa. Depois desse dia, a vida do pai se torna ainda mais difícil, uma vez que esse adoecimento desencadeia diversas outras coisas.

Após um tempo, a mãe de Hashem acaba morrendo. A então “futura esposa” do pai do menino acaba por ter o casamento dela cancelado, por a família dela considerar o casamento amaldiçoado. Envolto por lágrimas e se sentindo bastante sozinho, arrependido e culpado, ele vai buscar o filho com o marceneiro cego. Não sabia ele que o pior ainda estava por vir, enquanto levava o filho para casa em cima de um cavalo. Quando atravessavam a ponte, a parte em que o menino e o cavalo estavam cedeu, fazendo-os cair. O pai então paraliza, pois, num mesmo instante dois sentimentos completamente opostos tomam conta dele. Ao mesmo tempo em que se livrava de um fardo, o pouco amor que tinha pelo filho o impulsionava a pular atrás dele. Ele então hesita, e por tempo demais. Pensando no que faria a respeito, perde segundos que jamais retornarão. Ele então pula, mas não vê mais os movimentos do filho na água ou em qualquer outro lugar (e nunca mais veria), sendo o barulho da água, a visão de pedras e galhos as únicas coisas que os sentidos dele (e os nossos) conseguíamos perceber (em um momento do filme em que era bastante difícil se distrair). Quando já haviam atingido o mar, ele acordou ao lado do corpo sem vida do filho. Numa situação completamente desesperadora, não tendo mais esposa, sem mãe, sendo considerado amaldiçoado e agora com o corpo do filho nos braços, era vítima, do acaso, do destino ou quem sabe de Deus ou do diabo (nessas horas o que importa é a existência de um culpado). Teria ele morrido porque ele hesitou? Porque não o amou, porque o abandonou? Teria ele assassinado o filho?

Então, em meio aos gritos desesperados do desafortunado pai, cujo maior pecado foi ter nascido, o corpo do menino enche-se de luz, mexe um dedo e a trilha sonora se encarrega de provocar um “efeito libertário”.

Discussão sobre o filme “A cor do Paraíso”

A conversa sobre o filme iraniano – por sinal, única informação que soubemos antes de assistir ao filme – pode ser dividida em dois momentos: uma discussão psicológica inicial encerrada por outra, voltada para pequenos detalhes no que diz respeito às impressões sobre a imagem e o som.

Quanto à primeira parte, a conversa se dirigiu, principalmente, para o personagem do pai. Nesse sentido, a discussão seguiu três caminhos diferenciados. Alguns negativizaram a atitude do pai, o colocando no papel do egoísta, do vilão, daquele que não gostava do filho e só pensava em sua felicidade. Apontando inclusive, a possibilidade do pai escolher um outro caminho que não a entrega do filho ao carpinteiro, mostrando que a felicidade é possível apesar da deficiência do menino. Outros pensaram no movimento contrário ressaltando que o pai gostava sim do filho, no entanto, por conta de sua história de vida - morte da mulher e deficiência do filho, ele sentia a necessidade de ser feliz sendo, portanto, egoísta nesse aspecto, porém não dando uma conotação negativa. Nesse segundo movimento, dissolveu-se a atitude do pai, substituindo-a pelas motivações as quais o levaram a abandonar o menino. Outra pessoa se desvencilhou dessa discussão, preferindo colocá-la não no discurso de qual personagem deve ser vitimizado, mas apontou para uma espécie de cegueira observada não somente no menino, mas presente no pai também. Pelo que compreendi, segundo a idéia levantada, o pai não consegue ver como o filho consegue aproveitar a vida, independente de seu problema.
Sobre o menino, foram comentados aspectos relativos à superação em relação a sua doença, bem como enfatizou-se sua relação com o mundo. Neste caso, o filme nos convidou a pensar sobre como o personagem possuía uma sensibilidade aguçada no que diz respeito ao tato e a audição, ou ainda, alguns colocaram questões do tipo: Porque o menino diz que as mãos da avó são brancas, se ninguém lhe disse nada? Como ele fazia uma decodificação em braile ao tocar o trigo? Chamou a atenção também, o fato da experiência do personagem ser imediata, é como se ele estivesse mapeando o mundo ali mesmo no momento em que ouve; no mesmo instante em que toca.
Nessa direção, já entramos na segunda parte da discussão, onde prevaleceu uma conversa sobre imagem e som. Parece que ficou claro para todos como o filme faz uso de um bonito cenário, além de explorar insistentemente o som nas cenas. Isso produziu como efeito, o destaque de cenas onde esses recursos são valorizados. Falou-se da cena inicial, onde, inicialmente não há imagem, mas o som de crianças gravadas em fitas-cassetes, o som do menino sendo levado pela correnteza foi destacada como a cena que paralisa. O som que incomodava o pai durante as andanças pela floresta, significou para alguns uma espécie de conotação da desarmonia do pai com a natureza, diferentemente do filho que parecia estar em consonância com ela.
Outras cenas foram destacadas no filme, cenas comentadas por alguns como aquela “mais triste”, outras como “a melhor”, outras as quais “emocionaram mais”, outras foram vistas de forma diferenciada a cada novo assistir. Algumas faladas por duas pessoas ao mesmo tempo, outras pensadas de forma coincidente com duas, três, quatro pessoas. Outras ainda comentadas por apenas um. Enfim, acredito que elas permitiram na nossa discussão, pensar sobre a vida de outra(s) maneira(s).

8.08.2009

Curso de Extensão

A quem interessar possa, fiz este "copiar-colar" do site da UFS!
O GET (Grupo de Estudos do Tempo Presente) do Departamento de História da UFS está promovendo um curso de extensão que com certeza interessará a todos: docentes, discentes e amantes da 7a. Arte.

As sessões serão semanais, num total de sete. Serão exibidas obras cinematográficas escolhidas pelos palestrantes e, em seguida, os mesmos apresentarão as possibilidades de uso do material projetado como recurso pedagógico na sala de aula.

Contato: Valéria Oliveira
valeriamsoliveira@hotmail.com
9938-2809/2105-6871

PROGRAMAÇÃO

1a. sessão: 11/08- Eduardo Pina "Em nome de Deus"
2a. sessão: 18/08- Dilton Maynard "Adeus, Lênin"
3a. sessão: 25/08- Fernando Sá "Árido Movie"
4a. sessão: 01/09- Carlos F. Liberato "Quilombo"
5a. sessão: 08/09- Valeria Oliveira "Espelho d’água"
6a. sessão: 15/09- Fábio Maza "O Sétimo Selo"
7a. sessão: 22/09- Janaína Melo "Quanto vale ou é por quilo"

ORGANIZAÇÃO

GET - Grupo de Estudos do Tempo Presente (DHI/UFS)

8.03.2009

Pensamento, Cinema e Contemporaneidade

EMENTA: Produção de imagens e os modos de imaginação. Problematização do presente através do cinema contemporâneo. Imagem e modos de dizer. A velocidade e a política de aparecer e desaparecer. Imaginação e a intuição como método.
OBJETIVOS
  • Propiciar experiências de leituras compartilhadas do cinema contemporâneo;
  • Pensar a produção de imagens em Gilles Deleuze e Paul Virilio;
  • Dimensionar possibilidades de imaginação através do método intuitivo em Bergson;
  • Produzir textos sobre as experiências partilhadas em sala, articulando com os filmes e bibliografia de referência;
  • Investir em novas possibilidades de modos de existência para a experiência contemporânea.
PROGRAMAÇÃO
UNIDADE I: Leitura e exposição dos textos.
  • O que as crianças dizem. Gilles Deleuze;
  • Vós que entrais no inferno das imagens, perdei toda esperança. Paul Virilio;
  • Bergson: intuição e método intuitivo. Jonas Coelho.
UNIDADE II: Apreciação e discussão dos filmes selecionados.
METODOLOGIA
Exposição e conversa sobre os textos sugeridos na bibliografia de referência. Apresentação e problematização de produções cinematográficas. Produção coletiva de um espaço de registro e extensão das conversações disparadas em sala (o presente blog).
AVALIAÇÃO
Textos produzidos e postados no blog da disciplina (duas postagens).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
  • FOUCAULT, Michel; Ditos e Escritos II. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
  • DELEUZE, Gilles; Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
  • ____________; Crítica e Clínica. Rio de Janeiro: Ed.34, 1997.
  • VASCONCELLOS, J. Deleuze e o Cinema. Rio de Janeiro; Ciência Moderna; 2006.
  • VIRILIO, Paul; Guerra e Cinema. São Paulo: Boitempo, 2005.
  • ____________; A máquina de visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002
Textos publicados em meio eletrônico
COELHO, Jonas; Bergson: intuição e método intuitivo.
http://www.scielo.br/pdf/trans/v21-22n1/v22n1a12.pdf

Da Imagem do Pensamento e dos Intercessores

Couberam a mim tanto o imperativo quanto a honra de escrever um intróito para nosso blog. É esta, claro, a mensagem que será soterrada por tantas outras mensagens porvindouras, esquecida nas areias do tempo e da memória. Mas é esta mesma mensagem, creio eu, que servirá de porta de entrada às nossas demais contribuições. E - digo logo! - não falo de "pedras angulares", "fundamentos essenciais" ou idealismos afins. "Porta" não é "Pedra"! Porta é aquele vazio, aquele buraco, aquele nada que - ao contrário do corredor a guiar passos e perdas - nos convida a entrar. Quer-nos introduzir num lugar outro.
Acho interessante - assim sendo - dividir com os senhores algumas reflexões dum texto do Jorge Vasconcellos sobre Deleuze e o Cinema, cujo capítulo a ser tratado empresta seu nome a nossa postagem. E aqui é que surge um segundo apontamento para o andamento do weblog: este lugar não nos servirá, tão somente, para a aferição de nossos saberes e sua consequente transformação em notas e pontuações. Aqui é lugar de trocas! Não o comércio tresloucado, no qual o lucro dum é prejuízo doutro! Aqui não se visa o consenso, o diálogo comedido ou o conhecimento verdadeiro, mas sim a polêmica, o discurso apaixonado e a diferença. Por isto, julgo eu ser o escrito do Vasconcellos por demais interessante para as nossas pessoas.
Pois bem! A obra de Deleuze constitui-se como uma "filosofia da diferença", visto que faz movimentos críticos frente a todo pensamento "representativo". E por movimento crítico não devemos assumir um esculhambar sem sentido, desprovido de rigor e estudo - puro oba-oba! - mas a distinção mesma entre dois "pensamentos": um pensamento moral/representativo/dogmático e um pensamento sem imagem (ou, até melhor, uma nova imagem do pensamento)! Destaquemos, destarte, três obras deleuzianas em que tal problemática é bem colocada: Nietzsche e a filosofia; Proust e os signos; e Diferença e Repetição.
Vemos, em Nietzsche e a filosofia, três caracteres que constituem o pensamento dogmático. Primeiro: o pensador, enquanto pensador, quer e deseja a verdade; e o pensamento, enquanto faculdade, é naturalmente e universalmente reto. Segundo: o nosso pensamento é desviado do verdadeiro devido às forças estranhas ao mesmo - malditas sejam as paixões da carne e os erros dos sentidos! - que nos fazem cair no erro, tomando uma coisa falsa por verdadeira. E terceiro: Para pensar retamente, precisamos apenas dum método que nos coloque no caminho do bom, do belo, do justo e do verdadeiro. Vasconcellos diz de Deleuze que diz de Nietzsche: a tarefa da filosofia é, justamente - termo infeliz! - reverter esta imagem dogmática do pensamento, que não pensa sozinho e por si mesmo, assim como também não é turbado e perturbado por forças exteriores. O pensamento depende, necessariamente - outra palavrinha infeliz! - dessas forças mesmas que o arrebatam e o possuem.
Em Proust e os signos, Deleuze faz dessa imagem dogmática do pensamento uma imagem racionalista da filosofia - moral e representativa - visto que constituída de pressupostos, analisando a temática do tempo em Recherche du temps perdu. Prost, pela leitura de Deleuze, contrapõe este pensamento dogmático a uma nova imagem do pensamento, que enfatiza a relação entre as chamadas "forças externas", fazendo o pensamento sair de sua imobilidade e lhe provocando encontros. Intercessões!
Já em Diferença e Repetição, Deleuze apresenta quatro postulados sobre a imagem dogmática do pensamento. Vamos lá! O primeiro postulado é o Cogitatio natura universalis; o pensamento possui formalmente o verdadeiro e o busca materialmente. O segundo diz que tal pensamento é potencialmente compartilhado por todos os homens. Terceiro: o modelo da recognição, exercício concordante das faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo. E, por fim, o quarto postulado, que garante a unidade de todas as faculdades no príncipio geral do "Eu penso"! Deleuze nos fala de possibilidades para o exercício do pensar. A filosofia, para ele, é aquele movimento mesmo que se dá no pensamento, um rompimento das amarras da representação. Pensar é radicalizar. Pensar é criar conceitos!
Além da imagem do pensamento, Vasconcelos nos propõe, como eixo outro para interpretarmos Deleuze, a idéia de intercessor, encontro que faz o pensamento sair de sua inércia habitual e o mobiliza à criação. O intercessor é a condição mesma para que o pensamento se dê. Não se trata, no entanto, de lidar com os intercessores como simples alianças, apesar de se nos apresentarem como tal. Os intercessores atuam, na filosofia deleuziana, como um conceito, como o que propicia a resolução dum novo problema colocado. E o conceito, em Deleuze, pode ser definido nas seguintes cinco características. Tomemos fôlego e mergulhemos!
Primeiro! Não há conceito simples! Todo conceito possui componentes, visto que formado por uma multiplicidade complexa de elementos. Segundo! No plano de imanência - o habitat conceitual - o conceito desenvolve uma vizinhança necessária com conceitos outros, numa composição em rede! Terceiro! Cada conceito é um ponto de coincidência/condensação/acumulação de seus componentes! Uma organização espacial e visível dum fluxo temporal e incorpóreo. Quarto! O conceito opera sobre o plano de imanência a partir do problema que lhe propiciou a gênese! Finalmente, o último! O conceito, mesmo utilizando do linguajar cotidiano, mesmo cavalgando em sujeitos e predicados, mesmo preso numa gaiola de palavras, não é discursivo, visto que não encadeia proposições!
O conceito, em síntese, é a ferramenta mesma do filosofar. O seu instrumento! Quando Deleuze se propõe a discutir com saberes não-filosóficos (como a literatura, o teatro, a pintura e - vejam só - o cinema), ele coloca em jogo questões e problemas da ordem da filosofia. Seus livros sobre cinema, em exemplo, fazem pulular conceitos para se pensar o cinema. O que importa nessas intercessões não são as análises empreendidas sobre tal e qual obra, mas os conceitos que estas liberam à filosofia. Galileu, Descartes, Newton, Leibniz, Einstein, Gödel. Estes matemáticos não recorreram à filosofia para problematizar questões que são próprias da matemática. Eles pensam os problemas colocados por seus próprios domínios.
O papel do filósofo, entretanto, é de outra natureza. Neste perspecto, filosofar não é contemplação do mundo ou das idéias, nem dialéticas intersubjetivas ou mesmo reflexões metódicas sobre istos e aquilos. Filosofar é criar conceitos. É produzir idéias! Não a idéia do platônico, do pensamento representativo e da verdade dada, mas a diferença mesma produzida pelas intercessões. O cinema, como um "de-fora", força Deleuze a pensar contra a imagem moral e dogmática do pensamento. Sirvamo-nos, também, desse intercessor para construírmos nossa própria filosofia...

Da Imagem do Pensamento e dos Intercessores; In: VASCONCELLOS, Jorge; Deleuze e o Cinema; Rio de Janeiro; Editora Ciência Moderna Ltda.; 2006; pp.1-11.