8.20.2009

Uma sucessão de cenas faz movimento, mas faz sentido?

Cena 1.
O que quer Deleuze ao pensar “o que as crianças dizem”? Essa é uma questão que me vem; o que ele quer ao dizer isso? O que queremos nós ao vir aqui, hoje, quinta-feira, dia 20 de agosto de 2009? Queremos saber o que Deleuze quis dizer ao escrever sobre o que as crianças dizem? Talvez. Essa é a resposta mais verdadeira possível. Pois não se pode inferir sentido no outro por dedução. Assim a dúvida se instala como verdade. A dúvida se instala como uma política de convivência. A dúvida se instala como uma crise.
Assim sendo, por mim, tudo bem. Por mim, agora. Daqui a pouco pode ser muito pesarosa essa dúvida. Pode querer dizer de mim, aquilo que já não me agrada. Que já me retira o oxigênio, pois a dúvida quando instala verdade, tem efeito de gozo efêmero. A dúvida é um éter. Um perfume que seduz, mas que some no ar, como todo sólido.
Digo sólido porque nesse texto fiz da dúvida um sólido. Há também uma referência ao marxismo nessa frase. É uma ilustração e toda ilustração representa aquilo que se quer na luz. Que se quer na luz, sempre. Lustres, ilustres e lustrados querem luz acesa para brilhar. Mas lustres, ilustres e lustrados sabem como se dá a luz?

Cena 2.
Apaguem, por favor, apaguem o desenho que acabo de fazer com garranchos mal elaborados e pretensiosos, das suas cabeças. Retirem-no da sua memória e vamos começar de novo. Isso. Vamos começar de novo e dizer algo que soe melhor aos nossos ouvidos; melhor, que soe melhor aos meus ouvidos, pois aqui se trata de uma audição de imagem. Foi esse o trato. Esse acordo me permite a pretensão de dizer o que bem ou mal entendo e que vocês, aí do outro lado, entendam do mesmo modo, bem ou mal também. É um exercício de retórica. De uma retórica mediana, que conversa, ou melhor, busca conversar com a imagem de quem escreve. Uma retórica que tem a presunção de se conectar ao outro, sem que esse outro saiba. Uma retórica que faz o outro pré-existir. E pré-existir é uma forma estranha de ser, que não quer que nada seja estranho quando, efetivamente, vier a acreditar que está sendo. Talvez seja bom repetir essa formula. Quem sabe o Lázaro está por aqui e quer anotá-la no seu caderninho que celebra tiradas de professores em sala de aula. Devagar então: Pré-existir é uma forma estranha de ser, que não quer que nada seja estranho, quando, efetivamente, esse nada vier a acreditar que está sendo. Fui reescrever e acabei escrevendo diferente. Nomeei o nada na segunda frase. O que isso pode querer dizer? Não sei, mas que a sentença ficou um tanto quanto existencialista; ficou. O ser e o nada; Sartre... e estamos aqui ainda entre quatro paredes ouvindo um texto que em duas cenas estabeleceu o eu que vos fala como eixo de interpretação. E Deleuze? E as crianças? Bom, se está difícil entrar no texto de Deleuze, quem sabe se fosse agora percorrer um texto de criança? Uma luz! Opa, luz de novo não. Há uma criança que muito me diz, só que estranhamente já a conheci adulta e eu também já andava me distanciando dessa coisa juvenil, melhor, infantil. Tinha lá uns dezessete anos.
O cara, melhor, a criança é o tal do cachorro louco que também atende pelo nome de Paulo. (…). Paulo Leminski. Engraçado como esse cara, mesmo depois de morto consegue ainda ser criança sem sequer deixar de ser um cachorro louco. Bom, vamos a outro enquadramento. Apaguem as luzem. Baixem a cortina. Opa, Não se trata de teatro. Aqui é cinema. Cinema é luz e movimento. Diz Deleuze que também que cinema é luz e tempo. Bom, aqui, até agora é luz na tela e movimento também na tela. Então é só mudar de cena e ver para onde vão os olhos e as sensações.

Cena 3
quando chove,
eu chovo,
faz sol,
eu faço,
de noite,
anoiteço,
tem deus,
eu rezo,
não tem,
esqueço,
chove de novo,
de novo, chovo,
assobio no vento,
daqui me vejo,
lá vou eu,
gesto no movimento

Cena 4
A esse poema, Paulo Leminski deu o nome de Profissão Deus. Mas o que ele quis dizer nesse trabalho? Teve ele trabalho, suor para margear a Profissão Deus? Que tipo de trabalho é esse? Que tipo de gente é essa, que caberia no escrito desse espaço chamado Profissão Deus? O que é isso? De onde vêm essas letras que se fazem palavras e sentidos? Linguagem, tudo bem, linguagem. Mas alguém escreve, diz, articula os signos alfabéticos que compõem outros signos que demandam sonoridade, posto também se darem a atmosfera de outros modos. Isso permite até que os an-alfabéticos se façam alfabetizados. Mágico! Bom, mas o que esse cara que diz, diz do que ele diz.
Para essa criança Leminski o dizer é um dizer. Ele não vai, além disso, nesse poema. Ele não consegue ir além daquilo que já vem. Ele acompanha o que já vem como se não houvesse um barato mais interessante, um barato mais caro, que acompanhar o que está vindo. Aquilo que está na condição de vir. Assim ele não tem trabalho, pois trabalho para uma criança rima com disciplina, melhor com obrigação. Crianças não gostam de obrigação. São vagabundas por natureza. É da constituição de uma criança ser vagabunda, não querer ter trabalho.
Eita que essa cena já passou muito do que era pra ter sido. Não era para tanto. Era só pra dizer o nome do poema de Leminski. Parece que ela, embriagada dele, foi ali, melhor por ali, a dizer dele o que ele nem disse, mas escreveu, pois uma linha já lhe vinha. Em Leminski o mundo não tem depois, pois nele, viver é dar seguimento.

Cena 5
Volto ao Deleuze. Assim como fiz com Leminski, farei com Deleuze. Uma lógica. Um método. Para o Deus de Leminski, seria um pecado metodicar? Não. O pecado seria não viver. Não viver é ter trabalho. Assim métodos que não dão trabalho, que não imprimem uma obrigação, não têm como ser pecado. Talvez seja melhor chamar esse método de modo. Um modo de encaminhar, de dar seguimento.
Em O que as crianças dizem, Deleuze escreve e faz uma apologia do MEIO. Palavra chave desse texto. Palavra-deus dessas páginas as quais encaminho aqui. Não é uma palavra-síntese. Não é uma palavra para fechar. Apesar de que, nesses dias que fazemos, chave serve muito mais para fechar que para abrir. Bom, mas essa chave é distinta, melhor uma chave esquisita. Uma esquizochave. Ela perde a forma depois que cumpre sua função. Não é bem isso. Ela não consegue abrir duas vezes a mesma porta, pois ela leva consigo aquilo que lhe faz sentido pelo caminho. Ela leva consigo a porta que abre. Ela é uma chave que encaminha e com isso faz caminho. As serventias do seu modo de fazer e daquilo que é feito, é do que preciso dizer, para assim encaminhar aqui O que as crianças dizem.

Cena 6
Deleuze alerta para os riscos de ver depois. Não somos como os Thundercats. Não temos a visão além do alcance. Assim, sempre vemos depois. Um pouquinho que seja. Mas quando vemos, vemos sempre depois. O povo da Gestalt já fazia valsa com essa nota na primeira metade do século passado. Ver depois tem seus comprometimentos, mas ninguém quer ser cego. Por outro lado, querer fazer daquilo que é visto depois, algo que sirva para sempre, não seria arriscado? Melhor, seria possível? Como seria possível? Não consigo pensar em outra possibilidade, que não essa. O único modo (método) que permite que aquilo que se vê, se constitua como plano de verificação para o sempre ou para o depois, é estabelecer cegueiras conseqüentes àquele campo do que foi visto. Um acordo entre alfabetizados. Um trabalho que continua sem dar seguimento. Se acordo não desse trabalho, não existiriam os advogados. Acordos dão trabalho. Requerem ordens a serem seguidas e representam essa ordem pela força dos braços e da venda nos olhos. Lembrem da imagem da senhora justiça? Essa é a tônica do acordo iluminista/liberal; do ideário do saber moderno: ser implacável e justo (exato) em qualquer tempo.
Criança não consegue isso. Muitas vezes quero que Tito, meu filho de onze anos, o faça. Dupla denúncia. Renúncia ao que-vem-criança pra si e para o outro. A humanidade não se abala com esse tipo de questão, mas é esse tipo de questão que abala o senso de humanidade das criaturas que se querem humanas. Por outro lado, não haveria psicólogos. Se digo isso, deve haver um que-vem-psicólogo, pelo menos. Daí, quando esse que-vem-psicólogo se realiza, de algum modo ele é força nesse encontro nosso de cada dia, nas disciplinas e matérias que habitamos no curso de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. Daí dá pra arriscar e dizer que ele não é justo (exato) e mesmo muitas vezes implacável, ele é múltiplo ou não estaria falando disso agora. Pode haver um que-vem-criança num que-vem-psicólogo. Mas mesmo assim, segue o curso?

Cena 7
O que é um curso? O que uma criança diria de um curso? Um rio pode ser um modo de curso.
De onde vem?
Não sei.
Para onde vai?
Pro mar?...
Atravessar?
Talvez!
Mergulhar?
Tchibum!
As respostas de uma criança-deleuze não precisam (objetivam) aquilo que carregam consigo. São exploratórias daquilo que lhes se apresenta. E aquilo que lhes se apresenta vão ser portas para os seus modos esquizochave de ser. É assim que vão percorrendo o mundo, estando sempre um passo adiante, pelo menos. Não por conhecerem o mundo, mas pelo que o desconhecimento do mundo e de si lhes imprime enquanto vontade e força
Em alguma página de seu texto, aqui se fazendo imagem, diz Deleuze já não como criança: “No limite, o imaginário é uma imagem virtual que se cola ao objeto real, e inversamente, para constituir um cristal de inconsciente”.
Isso quer dizer o que diz. Uma critica contundente a um modo de aprisionar o que conseguimos ser, ao passado. É como se nessa sentença, ele percebesse uma política de produção da subjetividade em um mundo sem futuro. Por sem futuro, entendam o que bem queiram. Penso sem futuro aqui, como condição temporal. É o futuro que nos permite ver aquilo que não mais pode mudar. O futuro quando presente permite ver o passado. Quando não temos mais o futuro, o presente não vai jamais além de uma forma de experimentar o passado. Penso que é isso que o Deleuze está dizendo e o que as crianças não conseguem aceitar. Por isso dizem o diferente e ao dizer o diferente, constroem mapas para a diferença. Estilos para a subjetividade. Estéticas para a existência. Uma beleza!

Cena 8
Há referências no texto escrito por Deleuze que não sei para onde carregar. Dúvida se instala e que precisa sumir. Sumir por um encontro com algum conteúdo informativo ou por uma vontade minha, uma força-criança que diz de outros que se encaminham em mim, e que não podem ficar, ou melhor, que precisam sumir, por que podem. Freud, Delingny, Lewin, Klein, Churchill, Hitler, Littler Richard, Littler Hans, Sra. K., Proust, Guattari, Polack e Sivadon, Littler Arpad, Vermmer, Carmem Perrin e Dioniso são sujeitos próprios em nossa gramática e estão nas páginas do Deleuze. São nessas páginas próprios sujeitos ou as crianças, essas diabólicas criaturas seriam a possibilidade desse próprio subjetivo e desujeitado?
É possível fazer sentido nesse texto sem conhecer essas referências substantivas há pouco citadas? Ou elas, como representações, são a verdade por atingir para compreender “O que as crianças dizem” em Deleuze?
Que psicologia é possível dizer disso que busco dizer? Quando o dizer é busca, ele, o tempo todo, deixa no ar rastros de sonoridade. É preciso se escutar lendo para não ser o leitor que quase todo texto demanda. É preciso se escutar lendo para não ser um decodificador, um especialista em escuta. Ninguém escuta melhor uma criança que ela mesma, mesmo quando ainda não alfabetizada. Por mais estranho que seja essa atividade de se escutar lendo é ela o que funda a escuta que reverbera. Talvez seja ela uma esquizochave para uma conversa sobre essa questão do imaginário. Algo sobre a citação do Deleuze. Uma outra cena.

Cena 9
O olho trabalha por fixação. O ouvido por ressonância. As mães suspeitam dos filhos quando não há barulho na casa. As mães sabem ser criança. Sabem que não é preciso ver, mas é necessário ouvir seus filhos quando estão em casa.
O que as crianças dizem? Mil coisas. Outra coisa. Sei que as crianças dizem por saberem escutar. As crianças escutam e inventam. São sons antes de serem imagens. Fazem isso muito rapidamente, pois dominam o meio. Melhor; para elas parece que o meio é a melhor forma de serem caminhos e fazerem mapas com suas esquizochaves.
E quem quiser que conte outra...

Deleuze, G. O que as crianças dizem. Crítica e clínica. Ed. 34

3 comentários:

Nelma disse...

O João me disse ontem que na aula foi trabalhado um texto do Kleber, "baseado" em um de Deleuze. Teria sido este?

Elen disse...

é foi esse...
pena q vc não estava, acho q teria gostado!

J. Thiago disse...

Esquizotexto... ^^